sexta-feira, 14 de maio de 2010

A Árvore da Copa Vermelha

de Didito Camillo e Marcelino Ramos

Antonio já homem crescido carregava ainda no corpo as marcas da infância.
Do tempo de bem meninice só sabia das histórias que sua mãe contava. Tempo de fartura. Quando moravam lá no Angelim e o lugar era como um vale encantado. Onde o dia todo se via as crianças correndo por toda parte e subindo em arvores com verdes de todos os tons. Época em que as matas não eram alinhadas e escoria água cristalina por toda parte.
Naquele tempo sua família tinha um pedaço de terra onde criavam alguns animais e tinham uma casa de farinha. Nessa época as festas eram abundantes e o trabalho realizado com grande alegria. Até as crianças participavam da lida, tudo como se fosse brincadeira, horas e horas ralando mandioca. Mas festa mesmo, era o dia de ir pra cidade. Levavam farinha e beijú para vender na feira. Traziam tecidos pra fazer roupa nova e mantimentos pra abastecer a dispensa. As carnes eram colocadas em imensos fumeiros acima do fogão de lenha, na enorme cozinha da casa.
E assim viveram por varias gerações os membros de sua família. Acontece que no tempo de sua bem meninice, como que por febre, todos passaram a vender suas terras e partir pra cidade. E com sua família não foi diferente. Seu pai o velho Carlos, da noite pro dia, resolveu vender suas terras e partir pra Barra da Conceição.
A esperança da família era grande em ir pra Barra e viver com os juros do dinheiro que havia conseguido com a venda de suas terras, mas a bem da verdade é que o dinheiro só deu pra comprar uma casinha na Bugia, uma vila de pescadores a beira do Rio Cricaré.



O arrependimento acabara de bater a porta daquela família, mas palavra de homem não volta atrás...
O velho Carlos que em toda sua vida, plantou mandioca pra fazer farinha. Não tinha se quer um quintal que dava pra fazer uma hortinha. A tristeza foi secando a vida daquele velho homem, que passou a abusar da cachaça.
A mudança do Velho Carlos aumentava ainda mais o sofrimento de sua família.
E dessa época Antonio lembra bem, o de bom e o de ruim. Do de bom lembra daquilo que chamava de árvore de copa vermelha, que era na verdade o farol da Barra, onde o menino gostava de subir para ver o infinito azul do mar. E não era só o mar que ele gostava de ver, via também toda a Bugia, com suas casinhas de pescadores, o Rio Cricaré que desembocava no mar e toda a Barra da Conceição. Gostava de ficar em pé no alto da arvore de copa vermelha e sentir a brisa úmida batendo em todo seu rosto,
Do de ruim tentou por anos esquecer. Conseguia não. As marcas estavam por todo seu corpo, e essas eram muitas. Marcas das intermináveis surras, que o incomodaram por várias noites, quando acordava suado e com o corpo todo doído. E olha que essas não doíam tanto como acompanhar a derrocada de um sonho. Quando subir na arvore da copa vermelha já era um pesadelo. Sua família a cada dia ia se desmoronando, com um pai de quem só lembrava, da embriaguês e das surras. Da mãe apenas o choro, calado e seco.
Antonio acostumou a subir na arvore de copa vermelha a noite. Não queria que o pai descobrisse que estava subindo, o que seria um, dos tantos motivos, de mais uma surra. Também por não querer observar o mar que a cada dia engolia um pouco da barra da Conceição.
Um dia o pai de Antonio foi visto pela ultima vez no Laboratório de seu Altair. Como de costume o velho Altair, após receber mais um pedido, foi até a estante escolheu uma garrafa, pegou o pano que sempre carregava nos ombros, limpou a garrafa com carinho quase maternal. Foi até o balcão, pegou o copo. Mas não teve coragem de servir. Em sua frente estava um homem que pouco a pouco morria, junto com seus sonhos. Seu Altair como sempre disse que sua bebida era pra ser apreciada, e não consumida. Quem presenciou a cena disse que o velho Carlos naquele momento teve os olhos cheios de água, resmungou algumas palavras sem sentido e saiu cambaleando em direção ao Angelim. Nunca mais foi visto.


A mãe de Antonio, já cansada pelos dias de muita tristeza, não teve forças pra chorar e nem pra continuar sua caminhada. Faleceu meses depois.
Antonio agora estava só, e se deu conta que não tinha nem mais a árvore de copa vermelha, o mar que a dias atrás tinha levado sua casa, a vila de pescadores, chegou até na árvore da copa vermelha e a levou também. Por essa época Antonio contava com seus quinze anos, todos passados sem festa. Vivia dos mi-vale que ganhava dos pescadores e dos quilos de farinha que conseguia comprar com a fazenda de pequenos serviços. Morava na beira do rio, dormindo cada dia em um barco diferente. Mas era menino bom e rápido com um relâmpago, conseguiu arrumar um emprego. Primeiro como vendedor de peixe na banca de um pescador, em troca de comida, casa e algumas mudas de roupa. Vendedor bom, rapidinho arrumou freguesia. Com muito esforço conseguiu comprar um bicicleta velha, e com ela levava o peixe na casa dos fregueses. Menino responsável e prestativo. Sempre levava mais alguma coisa que os fregueses pediam, gás, compra de mercado, remédio. E sempre ganhava uma gorjeta.
Em pouco tempo Antonio comprou outra bicicleta e chamou um amigo pra trabalhar com ele, quando todos pensaram que o jovem iria trabalhar mais...ele parou de trabalhar um período e voltou a estudar. E exigiu que o amigo fizesse o mesmo, os dois revezavam enquanto um estudava o outro trabalhava. E os negócios prosperaram. Logo, logo passaram de bicicleta pra moto, depois pra uma caminhonete velha até chegarem a um caminhão novinho.
Sem nunca largar os estudos Antonio chegou até a faculdade. Tinha o sonho de ser professor e foi estudar história em São Mateus. Ia todos os dias de ônibus. Já decorrido um ano de seus estudos, no inicio do novo ano letivo, quando o ônibus passou pela BR eis que entra uma jovem das mais bonitas que tem no mundo. Uma morena linda, com cabelos compridos que pareciam querer tocar ao chão, corpo que parecia um viola e olhos cor de mel. Antonio pensou como em todos os anos na Barra nunca tinha visto aquela moça. E a bela morena sentou ao seu lado. Antonio queria perguntar seu nome, mas cadê voz? Não veio se quer uma palavra durante uma semana inteira. Todo dia era a mesma coisa: a moça entrava, sentava a seu lado e ele tremia feito vara verde, as pernas bambeavam e a voz secava. Na sexta-feira, quando voltava da faculdade Antonio comprou um bombom e quando a moça sentou a seu lado ele disse:
-Aceita?
E ela:
-Não!
Voz seca e pernas bambas novamente. Quando chegou ao ponto onde a moça desceria ela disse:
-Eu até gosto muito de bombom, mas é que você só tem um, e eu não queria deixar você sem nada.
Um sorriso e desceu.
O coração de Antonio quase saiu pela garganta. O fim de semana pareceu durar uma eternidade. Na segunda a noite quando foi pra faculdade ele comprou uma caixa de bombom e foi a moça sentar e ouvir:
-Aceita um bombom?
-Agora assim. Mas antes é melhor nos apresentarmos. Sou Tereza...
E foram muitas caixas de bombom até Antonio ter coragem de pegar na mão da moça.
E muitas outras até o pedido de namoro. E quando terminou os estudos veio o casamento.
Antonio então passou os negócios totalmente para seu amigo sócio e passou a dedicar-se exclusivamente a vida de professor, e era dos bons. Logo já tinha sua própria escola, mas sempre dividia seu tempo com a escola publica. Quando sua esposa também se formou veio o filho. Recebido com alegria tamanha que os números da matemática não puderam contar.
Pedrinho foi um menino muito amado. Pai presente, Antonio participava, e festejava, cada conquista do garoto. O abrir dos olhos, as primeiras palavras, os primeiros passos, as primeiras conquistas, primeiro dia na escola...tudo.
Adorava levar o menino pra beira do mar e contar as mais belas histórias. Até que um dia o menino pergunta:
-Papai como era meu avô, seu pai, cadê ele? Conta dele pra mim.
Antonio naquele momento engoliu seco e em um segundo passou por sua mente toda sua vida: a despedida da roça; a chegada de sua família na Barra da Conceição; o arrependimento ; as vezes que seu pai chegava bêbado; as surras; o sofrimento calado de sua mãe...

Refletiu toda sua vida, tudo que seu velho pai havia feito como o chefe daquela família...e como se fosse um relâmpago Antonio pegou seu filho no colo e saiu correndo beira mar e parou em frente ao lugar onde ficava a arvore de copa vermelha.
-Meu filho, aqui foi o melhor momento que vivi com meu pai e agora quero viver com você.
Levou o menino até a beira-d’agua e mostrou como é maravilhoso sentir a brisa úmida e salgada, bater em seu rosto. Antonio naquele momento decide mudar sua história de vida. Falou pro filho que todas as histórias que ele sabia, havia sido contada da por seu velho pai.
Ensinou que o povo sofrido de toda Barra da Conceição deveria se apegar ao Santo Preto e que todo ano ele deveria subir o Rio Cricaré e encontrar com os pretos de São Benedito. E só nesse momento ele estaria mais perto dos seus. E Antonio completou também:
-Ele me fez prometer que eu faria a mesma coisa com meu filho e é com muito amor que faço.

O menino promete que fará o mesmo com seu filho.
Eles vão pra casa e Antonio chora por toda madrugada, ao amanhecer o menino vai ao quarto do pai querendo saber por que o avô foi embora...
-Meu filho, seu avô sempre sentiu muita saudade dos tempos em que morávamos na roça, por mais que tentasse não conseguia se acostumar com a vida na cidade. Mas tinha dado sua palavra e vendido seu pedaço de terra, o orgulho o impedia de voltar atrás. Um dia ele saiu de casa pra comprar farinha e nunca mais voltou. Procuramos por dias e dias. Dizem que ele foi visto rondando pelos lados do Angelim. Fomos até lá, andamos por todos os lados e nada. Sempre dizem que ele está por aquelas bandas, mas nunca mais apareceu.
O menino com os olhos brilhantes, olha para o pai e fala:
-Liga não pai, um dia agente o encontra. Agora vamos procurar juntos.
Os dois se abraçam e Antonio chora.
Desde a conversa passaram muitos dias, e o menino sem falar o porque sempre pedia pra mãe levá-lo no Angelim. Por lá arrumou amigos de todas as idades. Gostava de ouvir os causos e não perdia uma festa de Santa Clara.
Na Barra da Conceição, coisas iam andando não muito bem. A Bugia, a cada dia, mais engolida pelo mar. Finalmente o governo liberou uma verba para a recuperação da Vila de Pescadores, outrora engolida pelo mar. Dia de comemoração na Barra da conceição.
Por sugestão de Antonio a primeira coisa a ser reerguida seria a arvore de copa vermelha, o Farol. E a data escolhida foi o dia 24 de dezembro daquele ano. Tudo preparado, farol reerguido, foguetório na praça, missa em ação de graças e povo todo preparado para a festa.
E naquele 24 de dezembro Pedrinho levantou cedo foi até a beira mar viu o nascer do sol e partiu pro Angelim. Antes passou na casa de Caboclinho, de quem gostava de ouvir causos, viola. Por ali ficou até a hora do almoço. Depois deu mais uma andada, assuntou com um, assuntou com outro e sempre a mesma coisa. Todos diziam que tinham visto, ninguém sabia ao certo onde.
No fim da tarde o menino tava chegando na Barra. Pediu a mãe para levá-lo até a foz do Itaúnas e disse que queria ir pra casa pela beira-mar, gostava de sentir a brisa no fim da tarde. Prometeu cumprir todas as recomendações. Como era menino obediente e a mãe tinha muitos afazeres, foi caminhando sozinho pela areia da praia.
Já no finalzinho da praia da Guaxindiba, Pedrinho avistou um senhor de barba longa e vestido com roupas de porte, mas esfarrapadas.
Duas coisas naquele homem chamaram a atenção de Pedrinho. O olhar triste e as cantigas do Ticumbi que cantava. O menino se aproximou e disse:,
- Boa tarde moço.
- Boa tarde menino.
- Que cantiga bonita, ainda hoje Caboclinho cantou ela pra mim. Onde o senhor aprendeu?
- Num tempo distante menino, tempo de alegria que foi perdida por aí.
- Também procuro uma alegria. Qual o seu nome?
- Meu nome foi perdido criança. E olha que não foi o mais importante que perdi.
Perdi também a brisa. O tempo. A história. O chão.
- E porque você não procura.
- Você ta vendo essas águas, vão dar do outro lado do mundo. Elas levaram tudo que eu tinha.
- Meu pai disse que meu avô, falava que tudo que o mar leva um dia traz de volta. Pelas águas ou pela brisa. Que basta agente acreditar em nossos sonhos. Batalhar e sempre pensar positivo.
- E quem é seu avô.
- Uma pessoa muito especial.
- Moço de sorte esse teu avô. Hein?!!
- Moçô, onde você passará o dia de Natal?
- Por aqui mesmo.
- Sozinho?
- Tenho ninguém não menino. Tudo o que tinha o mar levou. Vou por aqui esperando o tempo passar e quem sabe um dia eu consiga encontrar um pedaço de chão, meu chão. O fim de todos, mas até isso não chega nunca.
- Porque o senhor não vem passar o Natal na minha casa?
- Faz tempo que não sei o que é Natal ou família. Mas acho que seu pai pode achar ruim.
- Que nada. Meu pai me disse que meu avô sempre falava que devemos acolher sempre a quem está perdido. Além do mais, hoje será a festa da volta do farol, é festa em toda cidade. O senhor deve nos dar a honra de sua visita.
O menino ao dizer essas palavras já puxava o velho pelas mãos e com ele caminhava pela beira mar em direção à sua casa. Em todo caminho foi contando as varias aventuras que seu pai descrevia, sempre exaltando seu avô e o carinho com que ele tratava a todos. Quando já se aproximava de sua casa ouviu os fogos e viu o farol novamente de pé. Chegara o momento tão esperado, e seu pai corria em sua direção para que pudessem aproveitar aquele momento juntos. Nos dias anteriores, Antonio tinha virado mundos e fundos para conseguir o direito de subir na “arvore de copa vermelha” com seu filho assim que acabassem os festejos da inauguração.



Ao se aproximar do menino Antonio percebe a presença do velho. De súbito tem um susto enorme, pois, percebe reconhecê-lo. Sente o chão faltar aos seus pés. Não estava preparado para aquele encontro. Naquele momento tem a certeza de ter encontrado seu pior fantasma. As lágrimas... nascem como fonte em seus olhos. O choro toma forma de pranto. E não é somente ele. O velho Carlos também reconhece seu filho, abaixa a cabeça e pela primeira vez em toda sua vida lagrimas escorrem dos olhos, olhos cansados, arrependidos e perdidos. Jamais imaginara que o velho narrado nas histórias, daquele menino tão puro, seria ele. O avô de Pedrinhofora construído por seu pai, com uma pureza capaz de contagiar qualquer coração. O menino sem nada entender tenta perguntar, aos dois, o que está acontecendo. Na verdade tenta achar uma palavra para o que já sabe. Aquele velho que encontrara na praia era na verdade o seu avô.
E as palavras realmente não chegaram. De súbito Antonio pegou o pai e o filho pelos braços e saiu correndo em direção ao farol, encaminhou um a um até a escada e foram subindo. E quando estavam os três no alto da “arvore de copa vermelha” tiveram a impressão de que uma nova vida nascia, novamente sentiram o chão aos seus pés e o puderam ver que uma nova Barra da Conceição estava nascendo. O menino estava feliz por ter encontrado seu avô. Antonio estava feliz porque depois de muitos anos teria um Natal com a família completa. O velho Carlos estava feliz por que o mar começara a devolver a alegria familiar através da brisa úmida e salgada.
Sem dizer uma palavra os três sentiram a brisa percorrer todo seus rosto e por todo corpo.
Naquele dia Antonio prometeu viver a verdadeira história feliz de sua família. O velho Carlos prometeu reescrever sua própria história. E Carlinhos prometeu recuperar todo tempo perdido sem o seu avô.
E os três prometeram recuperar toda beleza e a história da velha e maravilhosa Barra da Conceição.

2 comentários:

Unknown disse...

A muito tempo não lia um causo com tamanho carinho,pureza e encanto e só mesmo quem vive esta realidade pode transformar a dor em beleza e emoção.Hoje a árvore de copa vermelha é apreciada,porém esta contemplação do mar,do horizonte, ficou guardada na memória de menino que com singeleza retratou tão bem esta linda história. Parabéns aos autores que relataram a história com simplicidade e beleza.
Rita Dantas

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.